Quaresma - PRATICA A MISERICÓRDIA
A misericórdia não é apenas uma emoção, um frémito interno, frente ao sofrimento alheio: ela nasce como ressonância aguda do sofrimento do outro dentro de mim, mas depois torna-se ética,
práxis e virtude, a maior virtude, como dirá São Tomás. E tem
razão o Papa Francisco quando diz que «a misericórdia de Deus
não é uma ideia abstrata, mas uma realidade concreta, com que Ele
revela o Seu amor, como o de um pai e o de uma mãe que se comovem pelo
próprio filho, até ao mais íntimo das suas vísceras” (MV, nº6). E
por isso, falamos em «obras», que supõem ação, atitude,
movimento de saída de si mesmo ao encontro do outro.
Desde a
sua formulação básica e inspiradora, no texto fundamental,
alusivo ao Juízo final, em Mt.25,31-46, até chegar, pelo século
XII, à sua formulação, em dois setenários, como as duas faces da mesma
moeda (a pessoa humana) onde está inscrita a imagem de Deus, as 14
obras de misericórdia apresentam-se ao cristão, não como algo
acessório ou facultativo, mas como expressão essencial e concreta
do amor a Jesus, nos mais pobres, com quem Ele se identifica: «foi a Mim, que o fizeste» (Mt.25,40).
Ela pede ao homem que tome a seu cargo quem é necessitado, que tome a sério o sofrimento do outro, e afirma que o homem é homem se acredita na humanidade do outro, mesmo que esta esteja ferida ou diminuída, e se ousa fazer ao outro aquilo que gostaria que lhe fizessem a si. É o que acontece com o samaritano da parábola, que faz tudo o que está ao seu alcance para aliviar concretamente os sofrimentos do homem deixado moribundo à beira do caminho (Lc.10,29-37).
Insistimos, portanto, neste imperativo «pratica a misericórdia», porque a misericórdia, segundo a linguagem bíblica deve ser feita. «Vai e faz o mesmo tu também» (Lc.10,37), diz Jesus ao doutor de lei a quem apresentou a parábola do samaritano. De Jesus, que realiza curas, diz-se «faz tudo bem feito» (Mc.7,27; At.10,38). No juízo final (Mt.25,31-46),donde se recolhem a maior parte das obras de misericórdia corporais, o que distingue os bem-aventurados dos malditos é precisamente o «fizestes» ou o «deixastes de fazer».
“Todo o discípulo, portanto, conhece a vontade de Deus, expressa por Jesus: «prefiro a misericórdia ao sacrifício» (Mt.12,7; e também sabe como deve querê-la e praticá-la: seguindo as pegadas de Jesus e aprendendo com Ele, manso e humilde de coração”
E, por isso, não basta, pura e simplesmente “praticar” a misericórdia, como mero exercício voluntarista, mas é preciso ir mais longe: trata-se de “ser misericordioso como o Pai” (Lc.6,36). A qualidade das relações humanas é fundamental quando se quer “fazer” uma obra de misericórdia. Não por acaso, no nosso Plano Diocesano insistimos na necessidade imperiosa de “tratar a todos misericordiosamente, a começar por aqueles que nos procuram” (PDP, 2015, p.31).
Nestes tempos difíceis, recordar a tradição das obras de misericórdia significa, em certo sentido, apreender a caridade como arte do encontro, como arte da relação, como arte de viver, mas significa sobretudo novo impulso de humanidade, para não permitir que o cinismo, a barbárie e a indiferença levem a melhor! Na verdade, “quantas situações de precaridade e sofrimento presentes no mundo atual (…) Não nos deixemos cair na indiferença que humilha, na habituação, que anestesia o espírito (…)
COM ALEGRIA
“A misericórdia não é, pois, uma realidade de sentido único. Envolve-nos a todos: como destinatários e atores” E, num caso, como noutro, ela é sempre fonte de alegria, ela é mesmo “a razão da alegria que o evangelho suscita em nós”.
Bem vistas as coisas, a misericórdia alegra e liberta quem a põe em prática, ainda antes de quem dela beneficia. Fazer o bem também é fazer bem a si próprio. Fazer o bem contribui para o bem-estar da pessoa. Este é um dos sentidos do refrão bíblico: «Faz isto e viverás» (cf. Lv 18,5; Dt 4,1; 5,29; 6,24; Lc 10,28; etc.). Em suma, na obediência ao mandamento divino, encontrarás vida e felicidade, encontrar-te-ás a ti próprio. «Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Lv 19,18; Mt 19,19), ou seja, amando o outro, amar-te-ás a ti próprio e descobrirás que o teu verdadeiro «ti mesmo» é aquele que ousas amar. Trata-se, portanto de “uma obrigação portadora de felicidade, uma vez que abre para
a bem-aventurança, já vivida no tempo”. São gestos simples e concretos, que enchem o coração de alegria e oferecem verdadeira consolação.
Acompanhem-nos, pois, nesta longa e bela caminhada,as palavras luminosas do Apóstolo Paulo, quando nos diz: «quem pratica a misericórdia, faça-o com alegria» (Rm.12,8). Jesus proclamou-o e nós podemos experimentá-lo: “Felizes os misericordiosos” (Mt.5,7).
Como concretizar então este objetivo de “valorizar a formação sobre as obras de misericórdia, traduzidas e concretizadas, para hoje, em resposta às exigências do nosso tempo e aos desafios das novas formas de pobreza” (PDP, 2015, p.31)? Sugerimos fazê-lo deste modo:
VALORIZAR E PRATICAR UMA OBRA DE MISERICÓRDIA,POR SEMANA.
AS OBRAS DE MISERICÓRDIA CORPORAIS
Mt.25; Tob.1,16-18; São Tomás de Aquino S.T.II-II, q.32,a.2,ad 1; GS 27; cf. CIC 2447-2448; EG 197; MV15
Pobreza física ou económica, individual ou estrutural:
1. Dar de comer a quem tem fome– Mt.25,35: CV 27 [a relacionar com as questões da fome e da má nutrição ou desnutrição];
2. Dar de beber a quem tem sede– Mt.25,35: CV27; LS 30 [a relacionar com a tortura da sede e a falta de água potável];
3. Vestir os nusMt.25,36 [a relacionar com o cuidado dos sem-abrigo e das crianças da rua…];
4. Dar pousada aos peregrinos – Mt.25,35; Regra de S. Bento nº 53, 6 [a relacionar com as questões da Hospitalidade e acolhimento de estrangeiros e refugiados…];
Pobreza relacional e social:
5. Assistir aos enfermos– Mt.25,36 [a relacionar com as questões da visita e acompanhamento dos doentes, da humanização da saúde e da necessidade de “enfaixar as feridas com a misericórdia”];
6. Visitar os presos– Mt.25,36 [a relacionar com a humanização das prisões, o acompanhamento das famílias com reclusos, os problemas da reintegração dos ex-reclusos / dos presos políticos ou religiosos];
7. Enterrar os mortos– Tb.1,17; 12,12ss [a relacionar com as questões do tratamento e da celebração cristã da morte e do acompanhamento das pessoas feridas pelo luto e ainda com as questões ligadas à cremação).
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