sábado, junho 07, 2008

O jogo das Pedrinhas





O Jogo das Pedrinhas

Era sábado, estava a passar o meu dia de folga em Ponte de Lima, entrei num café para ler o jornal e tomar um café.

Havia pouca gente no estabelecimento, por isso e enquanto tomava o meu café e tentava ler o jornal pude assistir com sossego ao acontecimento, cuja importância fui compreendendo. Era o jogo das pedrinhas. A menina tinha talvez três anos e estava sentada sobre o balcão. Um senhor, que parecia ser o pai, estava diante dela e tinha de adivinhar em qual das mãos tinha a menina colocado uma pedra pequenina. Ela, com os braços atrás das costas, sem que o pai pudesse ver, deixara a pedra numa das mãos, e agora estendi-as ambas, fechadas, para que o pai adivinhasse. O pai escolheu uma das mãos, mas não acertou. Foi isso que a criança lhe disse, começando imediatamente a preparar-se para repetir o jogo. Mas o pai pediu-lhe que abrisse as duas mãos com as palmas para cima. Era preciso que ela apresentasse a prova de que o pai não tinha acertado…

O senhor partiu do princípio de que a filha podia estar a mentir. Não estava… mas abriu as mãos.

Enquanto tomava o meu café assisti ao instante exacto em que aquela menina aprendeu que não era merecedora de confiança, que a sua palavra não tinha valor. que esperavam dela que fosse capaz de alcançar os seus objectivos. Aos três anos. Num jogo. Com o pai.

Muito se poderia dizer acerca das mentiras das crianças ao longo do seu desenvolvimento, muitas vezes relacionadas com a aprendizagem do que é a realidade e do que é a imaginação. Mas acho que este caso não tem relação com isso. Enquanto tomava o meu café e já não conseguia ler o jornal, pareceu-me estar a assistir a um exemplo concreto de como se colocam minas nos alicerces do mundo. A honra de uma pessoa é o reconhecimento de que essa pessoa é íntegra e digna de confiança. O mundo é uma selva, e isso conduziu-nos a desconfiança. Desconfiamos por princípio, por hábito, por medo, por insegurança, por prudência. Desconfiamos sempre.

Se alguma vez confiámos, passámos possivelmente pela amargura de sermos enganados. Desconfiamos porque a nossa experiência de vida nos leva a desconfiar. Aprendemos com os nossos erros e fazemos muito bem.

Fazemos muito bem… desde que não queiramos fazer nada para mudar o mundo, desde que estejamos contentes com a selva que nos rodeia, desde que não nos importemos em ferir as pessoas que estão ao nosso lado. Porque é preciso que tomemos consciência de que ofendemos uma. Não há melhor forma de fazer de uma criança um mentiroso do que desconfiar dela. E confiar nela é necessário para que venha a ser um adulto verdadeiro. Nas crianças devemos confiar sempre. Ao lidar com elas estamos a construir o mundo. Devem crescer com a noção de que se espera delas a verdade, a nobreza, a dignidade. Devem saber que é isso o normal, embora exija esforço. Querem ser boas, querem aprender, querem ser gente a sério. São o que de melhor há no mundo. Têm os olhos limpos, o coração limpo e as mãos limpas. Acreditemos nelas. Se alguma vez nos enganarem, não há o risco de que entendam esse comportamento como normal, porque se hão-de lembrar de que confiamos nelas. Não pensarão:

“toda a gente faz isto”, Sentir-se-ão mal. Terão pena. Voltarão à verdade.

Mesmo que tenhamos sérias dúvidas, será melhor deixarmo-nos enganar do que lançar sobre elas a suspeição, que magoa e marca e arruína. Pode perder-se qualquer coisa, mas é muito mais, e está noutro plano, aquilo que se ganha.


Arménio Rodrigues

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